Um grupo de mais de 100 cientistas alcançou um feito que, há poucas décadas, era tido como inviável: registrar a atividade celular e mapear a estrutura de um milímetro cúbico do cérebro de um camundongo. A região analisada representa menos de 1% do volume total do órgão, mas contém cerca de 200 mil neurônios conectados por mais de 500 milhões de sinapses. A conquista foi publicada na revista Nature e soma 1,6 petabytes de dados, equivalente a 22 anos de vídeo em alta definição sem interrupções.
O projeto faz parte da iniciativa MICrONS (Machine Intelligence from Cortical Networks), financiada pelo governo dos Estados Unidos desde 2016. A pesquisa é liderada por cientistas do Allen Institute for Brain Science, da Universidade de Princeton e do Baylor College of Medicine. O objetivo original era ousado: desvendar as conexões neurais de uma pequena área do cérebro de um camundongo, que recebe sinais visuais e os transforma em imagens.
Mapeamento detalhado e reconstrução em 3D
- O processo exigiu uma combinação de técnicas avançadas de microscopia, inteligência artificial e análise de dados.
- Após registrar a atividade neuronal enquanto o animal assistia a vídeos com paisagens, o tecido cerebral foi estabilizado com compostos químicos e cortado em 28 mil lâminas ultrafinas.
- Cada fatia foi fotografada, e algoritmos foram treinados para identificar os contornos celulares e reconstruí-los em três dimensões.
- O resultado permitiu identificar padrões antes desconhecidos de conexão neural, incluindo tipos específicos de neurônios inibitórios que se ligam apenas a determinadas outras células.
- “Quando você começa a estudar o cérebro, tudo parece caótico. Mas encontrar regras de conexão é uma vitória”, afirmou Mariela Petkova, biofísica da Universidade de Harvard, que não participou da pesquisa.
- Para Nuno da Costa, um dos líderes do projeto no Allen Institute, a visualização das células foi impactante: “Esses neurônios são absolutamente impressionantes — dá prazer vê-los se formando na tela”, relatou.
- Segundo ele, a comparação com uma festa ajuda a ilustrar o avanço: “Imagine estar em um evento com 80 mil pessoas e poder ouvir todas as conversas, mas sem saber quem está falando com quem. Agora imagine que você descobre essas conexões — começa a fazer sentido”.
Próximo passo: o cérebro completo do camundongo
A equipe envolvida no MICrONS agora trabalha para ampliar o escopo e mapear todo o cérebro do camundongo, que possui aproximadamente 500 milímetros cúbicos. Com as técnicas atuais, esse processo pode levar décadas. No entanto, novos avanços já estão em andamento. Forrest Collman, também do Allen Institute, afirmou que o grupo conseguiu desenvolver um método para cortar seções ultrafinas de um cérebro inteiro, o que poderá acelerar o trabalho.
Ainda assim, mapear o cérebro humano permanece fora de alcance. Com volume cerca de mil vezes maior que o de um camundongo, o órgão humano representa um desafio que exige tecnologias ainda inexistentes. “O cérebro humano está, por enquanto, fora do que é possível”, disse Collman.

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Aplicações futuras e desafios no financiamento
Apesar das limitações atuais, os pesquisadores acreditam que compreender com precisão o cérebro de camundongos pode ajudar no desenvolvimento de tratamentos mais eficazes para transtornos mentais. “Hoje, nossos métodos para manipular o sistema nervoso são grosseiros. Aplicamos uma droga e ela afeta tudo. Mas se pudermos agir diretamente em tipos específicos de células, teremos precisão”, explicou Sebastian Seung, neurocientista de Princeton e integrante do MICrONS.
O avanço ocorre em meio a cortes significativos no financiamento à ciência. O programa BRAIN, que apoia a iniciativa, sofreu uma redução de 40% em 2023 e mais 20% em 2024, após sanção do presidente Donald Trump. Para os especialistas, a continuidade de pesquisas desse porte depende de investimentos de longo prazo. “Precisamos de consistência e previsibilidade nos recursos para alcançar objetivos como esse”, afirmou Davi Bock, neurocientista da Universidade de Vermont.
Mesmo com os obstáculos, o marco estabelecido pelo MICrONS reforça a possibilidade de compreender, em profundidade, os circuitos que tornam possíveis o pensamento, a memória e a percepção — desafios que, por muito tempo, pareciam inalcançáveis.
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